PATAGONIA SESSIONS - PART 3/3

     Sempre pro sul. Era tentadora a ideia de passar mais um tempo na região de Chaltén. Talvez semanas, mas sabia que se quisesse ir até o Ushuaya no tempo que tinha, não poderia me estender muito por ali. Ainda fiquei por alguns dias explorando os arredores e conhecendo a galera local, mas logo reparei que muitos me falavam a mesma coisa - você precisa ir a alguma geleira.

     O Glaciar Perito Moreno fica a 131 km de El Chaltén, seguindo em direção ao sul e essa geleira já foi considerada a oitava maravilha do mundo por seu porte e características peculiares. Mas chegando lá levantei uma questão: Havia trazido na mochila, roupa suficiente para um frio austral?

     Dois dias assistindo placas de gelo se desprendendo e formando pequenos icebergs, foram suficientes para me despertar a vontade de conhecer a Antártida e ver grandes blocos de gelo milenar flutuando em alto mar. Mas por enquanto era o bastante. Estava batendo queixo. Saí do parque e fui a uma pacata cidade chamada El Calafate. Pacata mas que possui um aeroporto que traz turistas internacionais para a região e dá todo o suporte que a cidade precisa. Logo após o sol se pôr, procurei algum lugar para comer, beber um vinho e passar um tempo escrevendo. Temperatura caiu bruscamente ao entardecer, então um dos requisitos do lugar era simplesmente ser quente. Me sentei em uma poltrona ao lado de uma lareira de um restaurante estilo "casa de vó" chamado Kau Kaleshen e somente saí para ir dormir, já tarde. Nesse tempo abri um mapa da Argentina e percebi que o Ushuaya ficava a 877 km de onde eu estava, boa parte do trajeto em estrada de chão. El Calafate seria uma ótima oportunidade de partir para o Ushuaya de uma forma mais tranquila, evitando qualquer perrengue em estradas precárias como as da Tierra Del Fuego. Na manhã do dia seguinte fui a rodoviária local e me informaram que havia uma rota que passava por Rio Gallegos e Rio Grande, com duas trocas de ônibus e uma balsa que cruzaria o Estreito de Magalhães, isso me ligaria ao Ushuaya pela Tierra Del Fuego.

     Eram 2h da manhã quando caminhava pelas ruas desertas de Calafate, cabeça baixa, braços cruzados sobre a jaqueta úmida e gelada, mochila nas costas, enquanto conversava com um casal de suíços de uns vinte e poucos anos. Não conseguíamos esconder nosso desânimo pelo frio que fazia. Como estava gelada aquela noite. O ônibus partia as 3h da madrugada.

     Então cheguei ao Ushuaya. Perambulei pela cidade por um dia e comemorei o fim da jornada com cicloviajantes e mochileiros em uma noitada de muita cerveja. Mas sabe quando tu sente que ainda falta algo?

     Dezesseis de fevereiro e o sol ainda não tinha nascido. Fiz checkout no hostel e saí a pé, com todas as minhas coisas e a intenção de pedir uma carona até o Parque Nacional Tierra Del Fuego. Depois de umas conversas e uma nova olhada no mapa, entendi que o extremo sul das Américas é no final da Ruta 3, dentro do parque, a uns 13 km ao oeste. Na metade da manhã e com meio caminho feito a pé em uma estrada de chão, comecei a ficar desacreditado sobre uma possível carona. Carro nenhum passava por ali.

     Silêncio. Era quebrado apenas pelo uivo das rajadas de vento que vinham das montanhas, lá na frente. Isso também movimentava as árvores que me rodeavam e trazia gotas de chuva que golpeavam meu rosto como pequenos projéteis. Procurei abrigo embaixo de uma das árvores e aproveitei para tirar a mochila das minhas costas que a essa hora já pesava toneladas. Apoiei minhas costas no tronco da árvore, minha cabeça pendeu para trás, fechei meus olhos e ouvi um barulho de motor. Saí do abrigo para que me vissem e apostei em uma carona. Mas era apenas uma moto, amarela, um tanto barulhenta e visivelmente precisando de ajustes. Então ameacei voltar para a árvore quando percebo que a moto estava parando. Voltei correndo para a beira da estrada enquanto a chuva aumentava. O momento foi turbulento. Ele falou algo que não entendi. Levantou a viseira, mostrando apenas seus olhos e perguntou em voz alta, em português - Sabe onde é o camping? - Falei que não sabia, mas que havia visto uma entrada na curva anterior, poderia ser lá. Ele agradeceu, baixou a viseira e eu voltei correndo para baixo da árvore. Cinco minutos depois ele retorna, buzina uma vez e acena agradecendo com um gesto com polegar da mão direita. Olho para a placa da moto e percebo que era de Feira de Santana, na Bahia. Caramba! Então descolo uma carona até a entrada do parque com um casal argentino e logo na sequência outro casal hippie de europeus me leva até a Bahía Ensenada Zaratiegui.

     Essa pequena enseada de pedras as margens do Canal de Beagle abriga o último correio postal das Américas. Foi lá que recebi duas folhas de caderno do Sr. Carlos de Lorenzo, carteiro anarquista que cuida da pequena oficina postal e que tive uma longa conversa. Usei elas para escrever cartas para casa, que escrevi sentado abaixo de uma pedra em um colchão de folhas secas. Nas minhas costas, acima da pedra, subindo a colina ao oeste da enseada, iniciava uma trilha pelas margens do Canal de Beagle que me ocuparia pelas próximas seis horas.

     Sol estava se pondo atrás de uma montanha em forma de vulcão, quando cheguei no ponto mais ao sul das Américas. Procurei um lugar plano para montar minha barraca no gramado as margens do rio. Uma pequena raposa patagônica, popularmente chamada de Zorro, circulava tranquilamente. Entrei na floresta e voltei com uma braçada de lenha seca para a noite. A direita da minha barraca, cem metros acima, havia outra barraca e logo quando percebo ela ouço uma moto passando logo acima. Vejo que vão diretamente para a barraca que havia acabado de avistar. Eram dois caras que falavam alto e gargalhavam, em português. Brasileiros. Esbocei um sorriso de satisfação. Enquanto montava minha fogueira identifico ao lado daquela barraca a moto amarela que havia pedido informação para mim na manhã daquele dia.

     Cai a noite rapidamente e logo após montar minha barraca e a fogueira, vou conhecer eles. Eram três que viajavam separadamente, cada um a sua maneira e que haviam se encontrado por um acaso naquele lugar, naquele mesmo dia. Eu seria o quarto. William Costa, professor carioca que se desprendeu de um grupo de motociclistas na Patagonia e resolveu descer sozinho até ali. Antonio Guerra Jr, fotógrafo paulista que vinha de uma temporada no Hawaii e que estava procurando uma tranquilidade temporária que São Paulo não oferecia. E o Seu Zé...

     Seu Zé era o senhor da moto amarela. Ele tinha 73 anos e um sonho. Por uma boa parte de sua vida ele desejou ir ao Ushuaya. Falavam que lá era o final do continente e ele sempre tentava imaginar como seria aquele lugar. Um dia Seu Zé percebeu que para realizar um sonho só era necessário dar o primeiro passo e assim ele fez. Pegou um pouco de comida, juntou algumas roupas, acomodou tudo em caixas de papelão presas a lateral da moto e partiu. Como ele chegaria ao final? Não importava. Ele sabia que o universo trataria disso e assim aconteceu. Assim acontece. Sua moto foi pegando forma e tudo que ele precisava foi surgindo em seu caminho, naturalmente, conforme ele necessitava. As barreiras impostas vêm de nós. Tudo está ao nosso favor.

     Durante aquela noite fizemos uma bela fogueira e compartilhamos histórias quilométricas de cada um de nós. Minha cabeça dava voltas com tudo que havia acontecido até ali. Seu Zé foi o primeiro a entrar em sua barraca para ir dormir. Vi aquele senhor se levantando e uma chave virou em minha cabeça, como se todos os devaneios e questões pendentes na vida tivessem encontrando sua resposta. Cheguei a uma conclusão - Podemos qualquer coisa!